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Áudio-descrição: Opinião, Crítica e Comentários - blog de Francisco Lima

Mensagem aos áudio-descritores e aos consultores em áudio-descrição

por Francisco Lima

Mensagem aos áudio-descritores e aos consultores em áudio-descrição.

Prezados,
Estou terminando de ministrar mais um curso voltado à formação de áudio-descritores e consultores em áudio-descrição.
Em função de um estudante, teci as considerações que abaixo partilho com vocês.

“...agradeço sua presença na atividade, uma vez que certamente abrilhanta o curso. Como professor, entendo que cada um em minhas aulas é aquele led que, ao estar apagado, dentre os milhares, sentimos lhe a falta.
Diz um ditado americano bem antigo, certamente presente em outras culturas também: “a necessidade é a mãe da invenção”.
O povo americano foi, bem mais do que o é hoje, um povo reconhecidamente de “engineers”. Isso significava que uma pessoa inspecionava o terreno, qual faria um geógrafo, um topógrafo etc.; limpava-o, qual um hábil tratorista; escolhia as madeiras com as quais iria trabalhar, tal um biólogo, um marceneiro; projetava a casa, tal um engenheiro; desenhava-a, tal um arquiteto; a adequava ao gosto e estilo do morador, tal um designer etc. Mas, ele fazia também a hidráulica, o paisagismo e tudo mais para lá morar e fazer morar os seus.
Esse era o conceito de “engineer”, o qual está na matriz etimológica da palavra engenheiro, mas está, ainda mais firmemente, ligado à energia que desprendemos em vista à construção do que pretendemos para nós e para os que para nós são caros.
Tudo isso fazia o povo americano, contando com a cooperação, a colaboração e a união de todos em torno de um bem comum: desbravar o desconhecido para construir algo válido porque lutar, porque morrer.
Certo que esse espírito, dos que fugiram em direção a uma terra que desejavam construir para que lhes fosse a prometida, deixando para trás os algozes que lhes queriam o mal, encontrou-se com outros espíritos, transformou-se ou, quem sabe, foi transformado por outros menos louváveis, porém todos, todos eles, bem humanos.
A cegueira, meu caro leitor, não é uma fatalidade, embora possa ser transformada em uma; não é uma virtude, embora alguns a queiram transformar em uma; não é boa, nem má, mas é bem humana, já que é mais uma das diferentes características de que podemos nos identificar.
Sim, somos brancos, orientais, negro, somos cristãos, judeus, nem religião temos, somos pessoas cegas, enxergamos ou nem nos damos conta de que não vemos. E somos sempre humanos.
Pense em um objeto, um qualquer do mundo físico: pense em quantos atributos dele são exclusivamente percebidos pela visão. Veja, então, os atributos que são percebidos pela visão e por outros sentidos. Quantifique e veja quanto se vê com a visão, quanto se vê sem ela.
A cegueira não é a condição humana de viver na ausência da visão, é a condição humana de viver.
Os ouvidos veem o som que emana das coisas, mesmo daquelas invisíveis aos olhos; o olfato vê aquilo que emana das coisas, ainda que estas sejam invisíveis aos olhos; o tato vê aquilo que toca, quando a visão não pode ver porque não toca (o calor oriundo da pessoa amada). A vida de quem não vê não é uma vida de privação, mas uma vida de experiência, de emoção de verdadeiro “engineering”, como conceituado antes.
Nada do que fazem os demais sentidos substitui a visão, pois ela tem o valor que tem para nossa condição humana; mas, na ausência dela, não deixamos de ser humanos completos: continuamos a ser humanos!
Não é a existência da totalidade de nossos sentidos e demais habilidades que nos torna seres humanos completos, pois.
A sociedade vem se transformando e muitos já perceberam isso, visando à construção de uma terra prometida, em que as diferenças sejam a verdadeira igualdade entre as pessoas, uma terra em que a palavra deficiência não tem relação com falta ou falha, menos ainda com incapacidade, mas com um significado puro, destituído dessas ideias e que simplesmente diz da condição, da característica de um indivíduo, partilhada por milhões de outros, tal o é a cor de pele, o tipo de cabelo, o formato dos rostos etc.
Pessoa com deficiência é pessoa, não menos que pessoa.
Ora, o que impede uma pessoa em cadeira de rodas de subir ao décimo andar de um prédio? Em geral, nada: os prédios têm elevadores. Uma casa não pensada para a condição humana, mas apenas para um tipo de humanos, terá 3 degraus na entrada e uma pessoa em cadeira de rodas estará impedida de exercer seu direito fundamental de ir e vir; mas, acima de tudo, estará denegada do direito à dignidade de pessoa humana.
Uma pessoa cega ou com baixa visão não está alijada de ver o mundo, a beleza e a feiura do mundo. Com as tecnologias de que o mundo dispõe, por exemplo, a fala humana, a pessoa com deficiência visual verá esse mundo, apreciará, chorará ou rirá com o mundo belo ou feio.
Afinal, já houve tempo em que não era a internet que dizia das coisas, houve um tempo em que não era o Google Maps que diziam da Terra: os diários de viagem, as histórias oralizadas ou escritas davam asas à imaginação e ao espírito, que conheciam o mundo da fantasia e da realidade que os olhos não podiam alcançar.
Nada disso substituía a visão, mas não era porque nunca se tinha visto algo, de fato, que não se o conhecia, apreciava, amava ou o odiava.
E, tudo isso, certamente era humanidade.
A áudio-descrição, caro leitor, não substitui a visão, mas traz o mundo das imagens aos olhos da mente de quem não vê, permitindo à pessoa cega ou com baixa visão desfrutar de bem e serviços imagéticos, antes exclusivos de quem enxergava ou, de certa forma, que só eram plenamente desfrutados na totalidade pelos que enxergavam.
Quando aqueles que deixavam suas terras, para ir ao então chamado Mundo Novo, encontravam-se em alto-mar, que sentimento de perda não deviam ter? Tudo que conheciam não viriam mais; todos de quem gostavam, não viriam mais; o mundo desconhecido era simplesmente um escuro a que iriam lançar-se, tendo deixado para trás a luz do conhecimento, da cultura, da beleza da terra natal.
Qual a diferença deles com os que entram para o mundo sem a visão? Aqueles olhavam para frente e, embora não podiam ver o que se lhes apresentaria aos olhos, pensavam no que podiam construir, naquilo em que podiam exercer seu espírito de “engeneers”.
A dor de uma perda, ou a consciência de que não se tem algo, não merece a passividade: demanda pelo desprendimento de energia que nos determina, define e inspira como seres humanos.
A metáfora feita, a partir do conceito de “engineer” deve ser percebida como via de mostrar que a natureza humana não depende do funcionamento de todos os sentidos e habilidades físicas e mesmo intelectuais do ser humano. O que nos define, pois, não é a deficiência que temos, mas o que fazemos com nossas vidas.
Como professor, a via que busquei foi a de disseminar conhecimento que elimine ideias equivocadas, historicamente construídas e indignas da pessoa com deficiência.
A áudio-descrição, enquanto uma dessas vias, constitui uma ferramenta, nem é boa nem má, como não o é uma faca. Esta, na mão de um assassino, tira a vida; na mão de um cirurgião hábil, salva-a.
O profissional que entender a razão de uma áudio-descrição, o significado que ela dará ao usuário, o profissional que entender, de fato, quem é esse usuário, o cliente da tradução visual, estará, junto com os demais “engineers” construindo uma sociedade menos excludente e mais inclusiva.
Cordialmente,

Francisco Lima