Prezados,
Oportuno reapresentar o texto que abaixo se segue, considerando a recente obrigatoriedade da áudio-descrição determinada Pela Lei Brasileira de Inclusão, em particular nos artigos 67 e 70 da referida lei.
Cordialmente,
Francisco Lima
PRINCÍPIOS BASILARES DA ÁUDIO-DESCRIÇÃO: UMA DISCUSSÃO APROFUNDADA À LUZ DE BOAS PRÁTICAS
Francisco J. Lima
Resumo
O presente artigo faz uma paráfrase do texto de Joe Clark “Accessibility, Design, Writing Standard techniques in audio description” (2007). Discute-o, comenta-o à luz de boas práticas tradutórias colhidas em diretrizes para a áudio-descrição. Reflete sobre implicações tradutórias e o papel do formador de áudio-descritores no contexto da difusão da tradução visual no Brasil.
Palavras-chave - áudio-descrição, tradução visual, educação inclusiva, pessoa com deficiência visual
Abstract
This article paraphrases, discusses and comments on Joe Clark’s article "Accessibility, Design, Writing Standard techniques in audio description" (2007), based upon the best practices and standard guidelines for audio description techniques. It looks over the visual translation issues and the role of Brazilian trainers on teaching the best practices on Standard techniques in audio description.
Keywords – audio description, visual translation, inclusion, people with visual disability
1. Introdução
Nacional e internacionalmente a áudio-descrição é reconhecida como uma forma de tradução visual semiótica, a qual traduz em palavras, não necessariamente oralizadas, um evento visual.
O grande formador de áudio-descritores Gregory Frazier, ao cunhar o termo áudio-descrição, já reconhecia isso. E acrescentava que a áudio-descrição era uma forma de arte .
Embora os ensinamentos de Frazier, e de outros grandes formadores no campo da áudio-descrição (por exemplo Margareth Pfanstiehl, Jesse Minkert, Joel Snyder) estejam registrados em Anais da Conferência Internacional (1995), em vídeos no Youtube, e em artigos científicos, inclusive disponíveis na internet, o acesso a todo esse material só é dado aos falantes de língua inglesa, uma vez que não há tradução desse material para o vernáculo, e nem de vários outros produzidos na Inglaterra, Itália, Alemanha etc, os quais também estão em idioma inglês.
Essa realidade leva os brasileiros, interessados no estudo da áudio-descrição, a uma situação de desvantagem linguística. Alternativamente, os estudantes de áudio-descrição buscam literatura em idioma Espanhol, um tanto mais compreendido pelos falantes da Língua Portuguesa, ainda que não dominem aquele idioma.
A situação, então, fica assim: não se tem acesso à literatura original sobre a áudio-descrição (à fonte primária), esta que começou no oeste dos Estados Unidos, com Gregory Frazier, em meados da década de 1970, e no leste daquele país, com Margareth Pfainstiehl, no início da década de 80 (Snyder, 2013); não têm acesso aos ensinamentos posteriores, igualmente difundidos em língua inglesa; ficam na dependência de literatura espanhola, muitas vezes oriunda de segunda-mão, daqueles que estudaram com formadores, em geral americanos, fato que não seria de nenhum demérito, não fosse, como dito, que o acesso à leitura dos escritos desses formadores fosse feito no idioma espanhol, nem sempre da proficiência dos estudantes brasileiros.
Em outras palavras, não temos no Brasil literatura espanhola sobre áudio-descrição com tradução profissional, reconhecida e recomendada.
O fato é que muitos dos primeiros envolvidos com a áudio-descrição no Brasil formaram-se, por assim dizer, a partir de uma prática, a partir de uma experiência de acertos e erros, erros que muitas vezes cristalizaram como sendo acertos.
Felizmente, essa história está mudando e temos visto estudantes brasileiros indo estudar a áudio-descrição, por exemplo, com a renomada pesquisadora, Pillar Orero, na, Universidade Autonoma de Barcelona (UAB), inclusive como estudante de pós-graduação. Ainda a título de exemplo de que o Brasil vem buscando capacitação mais acadêmica e de qualidade do campo da áudio-descrição, acrescentamos que o autor do presente texto foi buscar formação com o Ph.D. Joel Snyder, um dos mais reconhecidos áudio-descritores e formadores de áudio-descritores no mundo, o qual, a propósito, foi o formador da referida pesquisadora da Espanha.
Em função da busca pela áudio-descrição acadêmica, é que hoje, no Brasil, muitas dissertações e algumas teses têm sido produzidas no campo da áudio-descrição, embora elas não se têm dedicado efetivamente à formação de áudio-descritores, mas à recepção da áudio-descrição ou à aplicação dela.
No paralelo dessa trilha, Lima, um dos formadores de áudio-descritores que se tem preocupado com a técnica tradutória da áudio-descrição, vem publicando artigos e orientado dissertações, voltados ao como produzir uma tradução visual empoderativa, uma áudio-descrição em que o usuário é visto como espectador da obra, não recipiente dela (ver Lima e colaboradores, 2010, 2011, 2012, 2013).
Para Lima (2011), o trabalho do áudio-descritor é traduzir os eventos em palavras claras, concisas, corretas, específicas e vívidas, de modo a eliciar, na mente de quem ouve ou lê, a imagem áudio-descrita, com a mesma magnitude que ela foi produzida na mente de quem as vê.
O autor enfatiza que a tradução visual é trabalho intelectual do tradutor e não pode, portanto, ser normatizado. Vai além, critica a tentativa brasileira de transformar em Norma Técnica certas práticas de áudio-descrição que sequer têm base em diretrizes gerais aceitáveis ou que registra a tradução visual, a áudio-descrição, em consonância com as normas ortográficas vigentes (Tavares et al, 2010; Lima et al, 2009; 2012, Seemann et al 2013).
Na esteira do entendimento de que não se deve normatizar, regrar, como se leis fossem, as diretrizes da áudio-descrição, Joe Clark, em seu artigo “Accessibility | Design | Writing |Standard techniques in audio description, afirma que “no mínimo, o campo da áudio-descrição precisa de técnicas gerais”, bem fundadas, conhecidas e praticadas .
O estudioso canadense afirma que, antes de qualquer normatização da áudio-descrição, muito estudo, pesquisa e aplicação da tradução visual precisa ser feito no mundo. Ele sugere que uma “Áudio-Descrição internacional” poderia adotar ou ratificar, um conjunto de diretrizes básicas, para a produção e locução de obras com áudio-descrição.
Aos moldes das conferências internacionais que adotam ou ratificam as declarações ou resoluções, áudio-descritores do mundo todo poderiam acordar como membros-parte dessa “áudio-descrição internacional”.
Na sugestão de Clark (2007),
“a adoção seria nominal e não vinculativa, sem mecanismo de execução. A adoção das técnicas agiria como um gesto, uma indicação de que a áudio-descrição é verdadeiramente governada por diretrizes e não é meramente autoexplicativa e que a indústria de áudio-descrição nascente pode concordar com as medidas iniciais”.
Joe Clark ressalta, ainda, que apenas depois de as diretrizes terem sido amplamente difundidas, usadas, comprovadas é que se poderia desenvolver programas de treinamento e sistemas de certificação ou de teste. Nessa esteira concordamos que são por técnicas basilares que devemos começar. Por conseguinte, também aqui no Brasil, só depois de profunda discussão, considerável produção científica e ampla difusão de produtos com áudio-descrição, poderíamos tornar essas técnicas gerais básicas, melhoradas e ampliadas, em “Normas Técnicas” para treinamento e programas de certificação.
Conforme salienta Joe Clark (2007), “a criação de treinamento e programas de certificação são processos longos que exigem tempo, conhecimento e dinheiro”.
No que concerne ao Brasil, tais processos estão, como dissemos acima, ainda muito incipientes, muito pouca é a população de pessoas com deficiência que já experimentou a áudio-descrição ou mesmo ouviu falar dela.
Como resultado, de um lado a áudio-descrição no Brasil ainda é confundida com descrição narrada ou pior, com narração esportiva e radionovela. De outro, diretrizes que traduzem a boa prática de áudio-descrição nem sempre são observadas (estão presentes) em importantes obras áudio-descritas, inclusive naquelas produzidas por áudio-descritores brasileiros de renome. Logo, não podemos dizer que a áudio-descrição brasileira está pronta para uma normatização, mesmo que o grupo que a pretenda normatizar tenha entre si produtores de áudio-descrição, formadores de áudio-descritores e usuários dessa técnica de tradução visual.
Conforme conclui Joe Clark, nos dias de hoje, temos não mais que diretrizes, sobre as quais podemos firmar a áudio-descrição empoderativa. E elas ainda não estão prontas para serem transformadas em Normas Técnicas, ou Lei. Daí, enfatizarmos que á açodada a intenção de se produzir uma ABNT da áudio-descrição, meramente porque se reconhece que há uma baixa qualidade na atual formação e atividade dos áudio-descritores. Não se combate um problema criando outro.
Nesse sentido, mister é aprofundarmos os estudos sobre as bases de sustentação para uma áudio-descrição científica e, acima de tudo, empoderativa.
Vejamos, a seguir, algumas dessas bases elencadas por Joe Clark e por nós comentadas.
2- Princípios Basilares da áudio-descrição
Não obstante Joe Clark fale da realidade da áudio-descrição no Canadá, nos Estados Unidos, e possivelmente no Reino Unido, suas reflexões e objeções cabem-nos com precisão.
Destarte, a seguir parafraseamos, relacionamos e discutimos a respeito de algumas das diretrizes mais universalmente aceitas para a tradução visual, necessariamente, não na ordem apresentada pelo autor.
E quando dizemos “aceitas” não queremos dizer, contudo, que são elas praticadas com rigor no Brasil.
Logo, para entendermos o raciocínio de Joe Clark, é necessário que compreendamos alguns conceitos e como estes devem ser aplicados na prática tradutória de eventos visuais em palavras.
A despeito de a descrição acompanhar o homem desde os tempos mais remotos; de se constituir um tipo textual de há muito estudado, e de as pessoas com deficiência visual reconhecidamente precisarem e se beneficiarem quando a descrição lhes é oferecida, a áudio-descrição, assim efetivamente cunhada, só começou a cerca de quarenta anos, nos Estados Unidos.
No mundo, a difusão da áudio-descrição só se dá, em maior escala, há mais ou menos trinta anos; e no Brasil, na última década.
Portanto, não só as diretrizes para a áudio-descrição ainda são conhecidas de poucos, como nem todos que as conhecem conseguem colocá-las em prática. Essa situação conduz a “divergências” e/ou resistência/dificuldade na aplicação das diretrizes.
2.1 Áudio-descritor
A pessoa que traduz ou faz as áudio-descrições, seja com antecedência (quando produz um roteiro, por exemplo) ou ao vivo, no ato, ao traduzir uma peça de teatro, uma conferência, um desfile, etc.
2.2- Narrador
A pessoa que faz a locução da áudio-descrição. Quando ao vivo, é o próprio áudio-descritor, e pode, teoricamente, ser uma máquina, um leitor de tela, com sintetizador.
É importante notar que o narrador, embora podendo ser um áudio-descritor, exerce função distinta deste, pois o áudio-descritor é o tradutor visual, enquanto o narrador é o locutor da tradução.
Fossem os termos narrador e áudio-descritor sinônimos, Joe Clark não teria diferenciado “descritor” de “narrador”, salientando que para esse último poderá até mesmo ser uma máquina a fazer a locução.
Por isso não há de se cunhar neologismos tais como “áudio-descritor narrador”, uma vez que uma pessoa ou está exercendo a função de áudio-descritor, numa tradução simultânea por exemplo, ou ela está exercendo a função de narradora, ao gravar a locução de uma tradução visual que ela própria ou outro áudio-descritor produziu.
Neologismos são bem-vindos quando necessários e quando não deturpam conceitos. De outra forma, passamos melhor sem eles.
De modo a elucidar o erro comum que áudio-descritores principiantes cometem, Saveria Arma (2011) explica:
A-D recebeu uma variedade de denominações, tais como "video description‟, “descriptive video service‟ (DVS), “audio captioning‟, “descriptive narration‟ and “audio vision” (Navarrete 2003, Clark 2001). Além disso, a áudio- descrição, que é o termo mais utilizado entre os especialistas, é também muitas vezes referida como “narração em áudio". No entanto, vale ressaltar que há uma diferença marcante entre as palavras "áudio-descrição" e "narração em áudio", embora sejam muitas vezes utilizadas como sinônimos.
Como Pujol (2007) explica, a palavra " descrição" é muitas vezes usada em contraste com a palavra " narração ". De fato, a ação não representa uma característica crucial para a descrição, mas é da maior importância na narração (Pujol 2007).
Por esta razão, uma vez que a ação de áudio-descrever implica lidar não só com ações, a palavra " áudio-descrição" deve ser preferida a " narração em áudio ". Além disso, o objetivo final da áudio-descrição não é contar uma história, mas mostrar e descrevê-la, isto é, ajudar a visualizar os elementos relevantes para a compreensão do enredo (definição, figurinos, gestos, aparência, movimentos e demais elementos relacionados). (...)
O ato de narrar também implica tomar um ponto de vista a partir do qual a história é revelada. No entanto, o ato de áudio-descrever deve ser o mais objetivo possível, isto é deve-se rejeitar tomar partido nos eventos, mas encontrar as palavras certas para permitir que o usuário final possa imaginá-los. (...)
Finalmente, a partir de um ponto de vista mais linguístico, enquanto a narração, muitas vezes usa tanto de primeira e terceira pessoa para contar uma história e inclui vários modos e tempos verbais, a áudio-descrição quase sempre usa a terceira pessoa e o tempo presente." (Saveria Arma, 2011, grifo nosso)
2.3- Produção ou obra
A áudio-descrição é uma tradução e, como tal, é aplicada em vários contextos. Chamamos esses eventos de obras, quando, no registro de Clark, o termo adotado é Produção.
Segundo esse autor, produção é uma obra de arte, um jogo, um programa de televisão, um espetáculo de dança, um filme, uma fotografia áudio-descritos em separado. Para o autor, áudio-descrever uma série de televisão completa, por outro lado, implica em uma sequência de produções.
Mais amplamente, a áudio-descrição não se restringe, porém, às obras cinematográficas, teatrais, museológicas, e demais produtos de ordem dinâmica ou estática, encontrados nestes contextos. Alcança tudo que pode ser visto, de uma legenda no filme, a um poema inscrito em uma árvore no parque; de uma fotografia no álbum, a um selo numa carta ou uma figura na cédula de R$20,00, etc.
2.4- O papel da áudio-descrição
Ao tratarmos de áudio-descrição, estamos tratando de uma forma de tradução visual semiótica de tudo que é, ou pode ser visto, mas que não está disponível ao indivíduo com deficiência, seja porque não pode ser depreendido, total ou parcialmente, pelo diálogo, pelos sons, seja porque não pode ser relacionado ao evento visual, por uma lógica contextual ou pela cognição.
Assim, a áudio-descrição vem trazer sentido onde não havia; trazer clareza onde o sentido estava ambíguo ou obscuro, e confirmar o sentido quando este, embora alcançado, requeira a áudio-descrição.
Assim, vejamos:
__ Oi, mãe!
__ Oi, filha!
__ Que bom que você chegou! Estava preocupada, pois Maria ainda não chegou e queria que você fosse ver o que ela está aprontando lá na loja.
__ Gostei deste aqui, não é lindo?
__ Certamente que sim. Gosto dele também.
__ Vamos, Joana, pegue isso logo e vamos embora! A mãe vai estar aqui em alguns minutos, se não formos para casa.
Ao apenas ouvirmos os diálogos acima, o que conseguimos entender? É possível visualizarmos o que está ocorrendo? Conseguimos saber quem diz o quê?
Sem a áudio-descrição, a pessoa com deficiência visual apenas terá como informação o conteúdo dos diálogos, quando muito saberá que mãe e filha se cumprimentam, inferir que foi a filha que chegou (foi?) e qualquer outra informação que puder retirar da sonoplastia, do contexto da obra, da sua lógica e cognição. Mas poderá, de fato, visualizar a cena com o empoderamento que a áudio-descrição permite? Na ausência desta, não!
Vejamos algumas questões que podem ser formuladas para construir na mente de quem ouve, as imagens as quais quem enxerga assistiu.
Onde a cena se dá? Quem chega? Como são mãe e filha? Como elas se cumprimentam?
Áudio-descrição Cena 1: À porta, uma senhora morena segura um pano de prato e sorri. De um Duster vermelho, estacionado à frente do portão, sai uma moça morena de cabelos cacheados, na altura dos ombros. Ela sorri. __ Oi, mãe!
Beijam-se no rosto.
__ Oi, filha, que bom que você chegou! Estava preocupada, pois Maria ainda não chegou e queria que você fosse ver o que ela está aprontando lá na loja.
Como se pode perceber, agora o usuário da áudio-descrição tem elementos para construir na mente uma imagem mais real da cena.
Para o segundo conjunto de diálogos, outras questões precisam ser formuladas, além de algumas já feitas para a primeira cena: Onde se dá a cena? Como são as mulheres? Quem são as mulheres que estão conversando? São irmãs? Quem é a filha que falou antes com a mãe? Quem diz para que se pegue algo e que a mãe viria ? Pegar o quê?
Áudio-descrição da Cena 2: Em uma loja de roupas
Uma moça morena, de cabelos pretos lisos e olhos verdes grandes está à frente da moça morena de cabelos cacheados.
__ Gostei deste aqui, não é lindo?
A morena de cabelos cacheados coloca um vestido de noite, preto, longo, à frente do corpo.
__Certamente que sim. Gosto dele também. Vamos Joana pegue isso logo e vamos embora. A mãe vai estar aqui em alguns minutos se não formos para casa.
Maria aponta para o vestido e para uma sacola sobre o balcão. Na mão, ela tem um molho de chaves e um controle remoto.
Joana olha na direção da porta... para a irmã... e sorri. A irmã olha para a porta: parada lá, com as mãos na cintura, a mãe olha fixamente para elas.”
Agora com a áudio-descrição, sabemos que as moças são irmãs, uma tem cabelos cacheados a outra, lisos. Sabemos que a irmã que cumprimentou a mãe está experimentando um vestido de noite, preto e longo, e sabemos que a mãe está à porta da loja, numa postura a ser interpretada assim pelo espectador vidente, como pelo espectador cliente da áudio-descrição.
Empoderado pela tradução visual, o espectador com deficiência visual poderá chegar, agora, a conclusões a que antes lhe estavam inalcançáveis pela ausência da informação imagética (e.g., “Joana olha na direção da porta... para a irmã... e sorri. A irmã olha para a porta: parada lá, com as mãos na cintura, a mãe olha fixamente para elas.”).
Outro exemplo em que se aplica a tradução visual, isto é a áudio-descrição, com vista a empoderar a pessoa com deficiência, pode ser aquilatado do exemplo abaixo, em que a obra, neste caso, é uma palestra, proferida por um professor de educação especial.
Em um congresso em que há mais de uma dezena de pessoas cegas e com baixa visão, o palestrante apresenta slides de diferentes momentos e com diferentes pessoas, ilustrando o surgimento do curso de que foi mentor. Nos slides, as fotos apresentam os lugares e as atividades de atuação do palestrante. Trazem também nomes e falas das pessoas que mais contribuíram para o desenvolvimento do curso, ao longo de mais de três décadas. O palestrante termina sua apresentação com uma fase de efeito. No entanto, em nenhum momento ele descreve os slides, isto é, as fotos neles contidas. Pior ainda, em nenhum momento ele se digna a ler o conteúdo dos slides, nem mesmo aquele cujo conteúdo era a frase de efeito que finalizava sua palestra.
Obviamente, que numa situação hipotética como esta, o palestrante deixaria os espectadores com deficiência visual no vazio, desconsiderando-os, infringindo, no sentido formal do direito, o Decreto Federal 5.296/2004, em seu artigo 53, e o Decreto Federal 3.956/01.
Agora, porém, essa mesma palestra conta com a tradução visual simultânea feita por um tradutor visual bem formado para a áudio-descrição empoderativa. Certamente que, com um áudio-descritor, todas essas informações seriam traduzidas aos espectadores com deficiência visual, e estes sairiam do polo excludente das imagens não áudio-descritas para o polo das pessoas incluídas, cuja dignidade de pessoa humana com deficiência foi respeitada. A palestra seria, portanto, inclusiva; e a áudio-descrição teria cumprido seu papel.
2.5- Descreva o que você observa
Conforme Clark salienta, “descreva o que você observa” é a exigência mais básica da áudio-descrição, mas que é habitualmente ignorada. De fato, no jargão tradicional dos áudio-descritores a diretriz é “descreva o que você vê”.
Segundo Joel Snyder (2013), “descreva o que você vê” implica em descrever aquilo que você observa, aquilo que você vê e que talvez o leigo não tenha dado conta de que estava visualmente disponível. “Descreva o que você vê” significa para Snyder uma escolha do que não áudio-descrever, por isso que tanto Joe Clark quanto Joel Snyder destacam que essa diretriz básica nem sempre é cumprida pelos áudio-descritores.
Com efeito, não é incomum vermos em áudio-descrições brasileiras, traduções visuais que não estão na obra ou que são feitas pela negativa.
Um exemplo conhecido é da áudio-descrição do cartaz do Filme “Hasta la vista”, em que a áudio-descritora diz “(...) Philip com uma pequena bolsa pendurada no pescoço, na calçada, aguardando, ansiosamente, o furgão (Do site: www.vercompalavras.com.br).
2.6- Neutralidade
Outra diretriz para a qual há uma concordância geral é aquela que orienta áudio-descritores e locutores da áudio-descrição (também chamados de narradores) a servir ao público e à produção, e não a si mesmos.
Como ressalta Joe Clark, nem o áudio-descritor, nem o locutor estão ali no ato tradutório para exibir o seu vasto vocabulário ou para destacar sua bela voz. “Você trabalha para a produção e o público. Uma certa auto anulação é necessária”.
A neutralidade exigida para o áudio-descritor reside em que este não deve expressar sua opinião, inferir sobre o conteúdo ou apresentar sua interpretação da obra. Logo não cabe ao áudio-descritor dizer que o personagem espera “ansiosamente” por um furgão que não aparece na obra.
A neutralidade para o tradutor visual implica em que este deve traduzir o que vê, observa, dando ao cliente da áudio-descrição os elementos para que possa criar na mente a imagem do evento visual áudio-descrito.
Já a neutralidade para o locutor, reside em que este não teatralize a narração, não transmita pela voz aquilo que ele pensa ou acha da obra. Em outras palavras, não se trata de fazer uma locução sem a adequada entonação. Não se trata de fazer uma locução desprovida de emoção, átona, mas se trata de fazer uma locução condizente com a obra, determinada por esta e definida por ela, de modo a construir imagem ou imagens, consoante o que pretendeu, com seu roteiro, o tradutor visual.
Assim, ao falarmos que o locutor deve manter uma neutralidade na locução, não significa que ele deve produzir uma locução neutra. Neutralidade na locução é diferente de neutralidade da locução. Isto serve para alertar o locutor para que não venha, no caso de achar que uma obra é “chata”, fazer uma locução “aborrecida”. A entonação serve à fala como um display da imagem: a própria entonação descreve!
Dizendo de outra forma, o distanciamento que o áudio-descritor e o locutor precisam ter da obra está no sentido de que eles estão ali para servir à obra e, por conseguinte, ao cliente, no sentido de que devem levar o cliente ao empoderamento visual do que a obra apresenta.
Cabe ao áudio-descritor, dentro do que demanda a obra, distinguir entre o que vai ou não vai ser áudio-descrito, uma vez que tempo e espaço restringirão a quantidade de tradução que ele poderá oferecer. E cabe ao locutor da áudio-descrição empregar a sua melhor técnica para produzir as imagens que o tradutor visual produziu, com as palavras que “escolheu”.
Joe Clark explica que se o tempo restrito para a áudio-descrição forçar o tradutor visual a ser “seletivo”, este deve, primeiro de tudo, descrever aquilo que é “essencial” saber, como ações e detalhes que podem confundir o cliente da áudio-descrição, caso não sejam áudio-descritos.
2.7- O que áudio-descrever?
Na linha do que tratamos acima, uma questão se impõe ao tradutor visual: o que áudio-descrever? Essa pergunta parece encontrar resposta fácil na diretriz “descreva o que você vê”. Entretanto, como vimos, “descrever o que vê” exige do áudio-descritor uma observação acurada, uma escolha do que descrever em função da obra. E isso tudo dentro de um tempo e um espaço restritos.
Por conseguinte, reitera Clark, que sempre que possível, o tradutor visual deve descrever ações e detalhes que contribuam para a compreensão da aparência pessoal, do cenário, da ambientação e mise-en-scène.
Ao tratarmos sobre o que descrever, é importante tocarmos em um ponto, em geral, mal compreendido pelos áudio-descritores principiantes, e mesmo por formadores e pesquisadores inexperientes com os estudos sobre a capacidade de as pessoas com deficiência visual produzirem e fazerem uso ótimo das imagens: descrever com mais ou menos detalhes?
Pesquisas de recepção, muitas vezes, metodologicamente mal desenhadas, coletam dados que ora retratam a recepção (fruição) da obra; ora retratam a memória do entrevistado a respeito do que viu na obra; e apenas algumas vezes refletem a “recepção” da áudio-descrição em si. Essas pesquisas além de não deixarem claro como distinguem a recepção da obra, a recepção da áudio-descrição, e a capacidade de memorização do entrevistado, fazem uso de sujeitos de pesquisa ingênuos para a áudio-descrição, isto quando não fazem uso de sujeitos que sequer tiveram experiência com o teatro e o registro próprio dessa arte.
Para além disso, interpretam equivocadamente o fato de alguns sujeitos cegos adventícios dizerem “que preferem descrições mais detalhadas”. Isto em oposição aos sujeitos cegos que “preferem descrições mais sucintas”.
Ocorre que uma áudio-descrição, quando empoderativa, vem com o máximo de informações, dentro do espaço e tempo permitidos. E uma áudio-descrição meramente rotulada vem com adjetivos ornatos e detalhes inexpressivos ou deduzíveis. No primeiro caso, tanto as pessoas cegas congênitas, quanto as pessoas cegas adventícias irão apreciar. No segundo caso, apenas as pessoas com baixa visão ou que já tiveram experiência visual (pessoas cegas adventícias) irão tolerar a áudio-descrição. Some-se a isso o fato de que grande parte das pessoas com deficiência visual, mormente as cegas congênitas, estão acostumadas a cognitivamente preencher as lacunas descritivas de eventos visuais, fazendo uso das poucas informações descritivas que lhes são disponibilizadas.
Em suma, não se trata de estilos diferentes, cegos congênitos versus cegos adventícios, mas de uso ótimo da informação empoderativa versus detalhes ornatos. Estes, pertinentes a uma áudio-descrição tecnicamente inadequada e pobre; aquela, rica e capaz de eliciar, na mente de quem ouve, o evento visual áudio-descrito.
2.8- Como descrever?
Regida pelo evento visual, a áudio-descrição é um ato intelectual do áudio-descritor. Este profissional deve sempre curvar-se, pois, aos ditames da obra, não podendo eximir-se de seu papel de agente empoderador -- a ponte entre a inacessibilidade do evento visual e a inclusão da pessoa com deficiência por meio da áudio-descrição daquele evento.
Como vimos, quando a áudio-descrição é feita, por exemplo, de um evento fílmico ou teatral, é o tempo entre as falas que determina o quanto de áudio-descrição (número de palavras) se poderá empregar, isso, sem desconsiderar o empoderamento do ato tradutório. A qualidade descritiva da tradução visual, porém, é ato exclusivo do áudio-descritor.
Destarte, caberá a ele fazer as escolhas tradutórias sobre o que e como áudio-descrever, no tempo e/ou espaço disponíveis. Ele deverá evitar áudio-descrições que sobreponham a fala dos personagens, e mesmo, que sobreponham trechos musicais quando são essenciais para a compreensão do conteúdo da obra ou quando são essenciais para a própria produção da imagem visual na mente de quem ouve: a música fala, e a fala produz imagens na mente de quem a escuta.
Ao tratar do como descrever, resguardando ao áudio-descritor o que descrever, Joe Clark tangencia um ponto nevrálgico da áudio-descrição, um que é fácil de ser “entendido”, mas difícil de ser aplicado: a diferença entre descrição e áudio-descrição .
Com efeito, ao questionar se é lícito traduzir por sobre a música e/ou por sobre as falas, Joe Clark lança “dúvida” sobre algo já estabelecido, a saber: a áudio-descrição deve ser sempre empoderativa. Isto é, a máxima da tradução visual é dar condições (oferecer os elementos descritivos) que permitam ao cliente da áudio-descrição ver, “no olho da mente”, o evento visual áudio-descrito, essencial para a compreensão da obra.
Não se trata, pois, de uma mera questão de poder, ou não poder áudio-descrever por sobre um diálogo ou música, mas de quando fazer a áudio-descrição. Não poderá, quando o diálogo e a música forem essenciais para a compreensão da obra e poderá quando, na ausência da áudio-descrição, ainda que com o diálogo, a sonoplastia e a música preservados, não for possível enxergar (entender/ver) o evento visual.
Toda vez que um termo é partilhado por mais de uma área do conhecimento, a utilização dele deve ser feita e compreendida sob a ótica da área em questão. Assim, o termo descrever, no campo da áudio-descrição, significa traduzir, e traduzir com vista ao empoderamento da pessoa com deficiência. Essa tradução não é feita a partir da subjetividade, desejo, inferência ou percepção do áudio-descritor, mas é produzida sobre o que dita a obra, sobre o que a obra exige que seja traduzido, para que ela possa ser vista pela pessoa com deficiência.
Por isso é que descrever qualquer um descreve, áudio-descrever cabe aos áudio-descritores. Por isso que nem todos os profissionais que trabalham com técnicas descritivas são ou serão áudio-descritores. Por isso, também, é que se poderá áudio-descrever por sobre uma fala ou música sempre que a obra exigir. O áudio-descritor mais experiente, mais bem formado e mais bem profissionalmente talhado saberá disso.
Afinal, da mesma forma que para fazer uma tradução visual o áudio-descritor deve estudar e aplicar as técnicas tradutórias da áudio-descrição, para fazer uma descrição é necessário que o profissional tenha igualmente conhecimento técnico específico de sua área, com domínio vernacular e do conteúdo do que se está descrevendo. Por exemplo, um catalogador no museu precisará ser um profissional qualificado para fazer o ofício a que está ligado, conhecer a língua portuguesa, as técnicas de catalogação, e principalmente de descrição. No entanto, diferentemente do áudio-descritor, ele não precisará saber da clientela com deficiência visual, por exemplo, de como essa clientela enxerga a partir das imagens háptica ou auditivamente capturadas.
Saber o que diferencia a áudio-descrição da descrição é, pois, fundamental para que se possa distinguir quem é o tradutor visual e quem é o descritor, já que não é porque a áudio-descrição está em um catálogo que ela deixa de ser áudio-descrição. Ademais, áudio-descrição é tradução visual, e semelhantemente à tradução lingual, partilha com outras áreas características próprias de um e outro campo.
Enfatizamos: uma áudio-descrição não deixa de ser áudio-descrição porque está num suporte escrito, assim como uma descrição não se torna áudio-descrição porque foi oralizada, narrada.
Ora, uma tradução deixaria de ser tradução porque foi oralizada (foi dublada)? Uma tradução só seria tradução quando legendada (feita por escrito)?
Certamente todos sabemos que um dublador sequer precisa conhecer da língua original, do texto que ele agora dubla para ser um dublador. O mesmo ocorre com o locutor, que vai narrar uma tradução visual. Nessa mesma esteira, o legendador nem precisa conhecer a língua original, de onde o texto com o qual ele agora trabalha foi traduzido, nem das técnicas de dublagem exigidas ao dublador. Tanto dublador, quanto legendador, pois, embora trabalhem com o produto da tradução, necessariamente não são tradutores, ou jamais se tornarão um.
Da mesma forma, nem o locutor da áudio-descrição, nem o editor do filme em que a áudio-descrição foi inserida, precisam ser, ou serão, áudio-descritores, ainda que seja desejável que ambos conheçam de áudio-descrição, para melhor produzirem seus trabalhos. A tradução visual foi feita quando o áudio-descritor traduziu o evento visual em palavras, e ele o fez por escrito ou pela fala, como no caso da tradução simultânea, aos moldes do que ocorre com a tradução lingual.
2.9- Quanto descrever
A quantidade de descrição oferecida quando o evento visual é simultâneo (uma peça teatral, uma aula, etc.), ou quando é gravado (um filme no cinema, uma novela na televisão), é determinada grandemente pelo tempo, como vimos. No caso de uma áudio-descrição feita de um elemento imagético, por exemplo, em uma página web, a tradução visual pode ser delimitada pelo espaço, quantidade máxima de texto permitido para aquela descrição. Também o será, em caso de uma áudio-descrição de uma imagem em um jornal ou revista etc. Contudo, poderá haver casos em que se dará ao tradutor visual o espaço que desejar para áudio-descrever. Nestes casos, o limite do quanto traduzir será ditado exclusivamente pela obra e pelas técnicas tradutórias, mormente aquelas que podem ser resumidas na expressão 3 Cs mais E mais V: concisão, clareza, correção, especificidade e vividez. Neste caso, uma diretriz que norteia o trabalho do áudio-descritor lhe lembra de que “menos é mais”.
Com acerto alerta-nos Joe Clarck, com quem “dialogamos” neste artigo: "Descreva quando necessário, mas não necessariamente descreva".
Afinal, descreva significa traduza de maneira empoderativa, não apenas descreva, no sentido do senso comum. Descrever, qualquer um descreve, inclusive as pessoas cegas ou com baixa visão, áudio-descrever, aos áudio-descritores cabe, já dissemos alhures.
No sentido de que não se deve áudio-descrever tudo que se vê, posto que tempo e espaço são limitantes no ato tradutório, e estabelecido que é a obra que determina como e quando áudio-descrever, posto que a regra imutável é o empoderamento do cliente do serviço, é preciso dizer que a escolha do que não vai ser descrito não pode ser ditada pela censura do tradutor visual, o qual, por ventura, não saiba como áudio-descrever ou que, por razão particular, não queira áudio-descrever um dado evento visual .
2.10- Consistência Tradutória
Os aspectos clareza e correção são indispensáveis para a consistência tradutória de uma obra. Nomes de pessoas, lugares e mesmo objetos precisam ser respeitados ao longo de uma obra (um episódio de uma série na televisão), ou ao longo de diferentes obras (filmes sequenciados), como por exemplo, o filme “De volta para o futuro”, De volta para o futuro 2”.
Descreva de forma tão consistente quanto possível, usando os mesmos nomes de personagens e terminologia ao longo de uma produção ou através de várias produções relacionadas, a não ser que as exceções sejam justificadas.
Acorde com este entendimento, Joe Clark (2007) chama-nos a atenção, contudo, para uma possível exceção. “Se um programa de TV se refere a um personagem como Peter, em nove episódios, mas como McKinley em um décimo, use "Peter" nos primeiros nove e "McKinley" em décimo”.
A consistência dos descritivos intra produção e entre produções é crucial, pois com o passar do tempo, o usuário poderá criar imagens mais completa dos personagens e lugares. Assim como na recepção da tradução háptica, na recepção da tradução visual a captura da informação segue por uma via sequencial, diferentemente de quando se vê a cena. A visão adquire e processa a informação globalmente, a audição, ao capturar as palavras da tradução visual, “vê” sequencialmente.
2.11- Não infira sobre o evento/não descreva o que você não vê
Estas diretrizes, imbricadas que estão com a diretriz “descreva o que você vê (“descreva o que você observa”) são costumeiramente descuidadas pelos áudio-descritores afoitos, principiantes ou de formação duvidosa.
Os mais renomados tradutores visuais insistem em que se deve descrever aquilo que leva a compreender o estado de espírito, e nunca este próprio; o que leva a se ter a apreciação da estética, e não a estética em si.
Segundo Joe Clark (2007), o áudio-descritor não deve descrever o estado mental, raciocínio ou motivação. O autor lembra, ainda, que:
“Existem várias maneiras de descrever certas expressões faciais e outras manifestações de emoção. Alguns descritores acreditam que você deve descrever apenas a configuração física (por exemplo, franzir a testa, o sorriso, careta ), enquanto outros acreditam que não é errado adicionar uma descrição de emoção, se é claramente visível (por exemplo, carranca impaciente, sorriso frio, careta de frustrado). Qualquer abordagem é defensável. No entanto, é sempre errado descrever uma motivação ou qualquer outra coisa que não esteja visível.”
Embora seja comum entre os áudio-descritores principiantes, e/ou menos experientes, a dificuldade de traduzir aquilo que nos leva a uma dada conclusão (optam pelo atalho interpretativo, isto é pela conclusão) essa dificuldade não justifica tal atitude. Não é lícito ao tradutor visual dar a interpretação do evento visual, mas lhe é de ofício oferecer elementos para que o cliente possa concluir por si só, empoderado que foi do evento visual, pela áudio-descrição.
Assim, em lugar de dizermos que alguém está zangado, ou que tem a “intenção de...”, áudio-descrevemos com expressões adjetivas, atributivas, as quais venham expressar o estado de espírito ou a pretensão que identificamos no personagem .
Tais descrições devem evitar, igualmente, adjetivos e advérbios em si subjetivos. Destarte, é correto dizer “carranca impaciente”, uma vez que impaciente descreve carranca, mas não é correto dizer que o personagem está impaciente. Para este caso, descreveremos as ações, as atitudes, as expressões faciais e corporais do personagem, as quais nos permitem inferir que ele está impaciente. O áudio-descritor, portanto, deve empoderar o cliente para que este assim possa concluir ou mesmo discordar do que se acha do estado de espírito do personagem ou do significado de uma dada cena.
2.12- Descreva no vernáculo e não na língua original da obra
A despeito de esta diretriz parecer óbvia ao leigo, e deve ser, na prática implica em dizer que se deve observar o registro linguístico da obra, sua peculiaridade temporal, seus jargões e expressões próprias etc. Por outro lado é um alerta para que não se faça a tradução de uma áudio-descrição existente em um idioma, para o outro, isto é, para cada idioma uma nova áudio-descrição deve ser feita.
Logo, um filme em Francês, lembra Joe Clark, deve ter áudio-descrição em Francês, para a versão em inglês, uma nova áudio-descrição deve ser feita, agora em inglês. A razão disso tem explicações das mais simples às mais complexas. Ilustremos com uma das simples:
Há 18 segundos para se inserir a áudio-descrição, no idioma Francês conseguiu-se descrever com x palavras, a mesma obra, em inglês propiciou vinte segundos de intervalo para a inserção da tradução visual, foram necessárias contudo, x menos 3 palavras para traduzir o evento visual. Então, o áudio-descritor poderá lançar mão de uma descrição ainda mais informativa, do que pôde o áudio-descritor da obra em Francês.
3- Considerações finais
O texto de Joe Clark, em comento, embora não seja denso na escrita é muito rico para uma discussão mais avançada das diretrizes tradutórias que sustentam a áudio-descrição. Aqui, contudo, tratamos de alguns dos pontos mais significativos levantados pelo autor.
Visamos dialogar com ele, ora parafraseando-o, ora explicando o sentido em que suas observações remetem o áudio-descritor à reflexão.
É mister que estudantes e formadores brasileiros atentem para a qualidade da literatura em que se baseiam, buscando em fontes primárias sua formação, e acima de tudo sua sustentação ética-profissional, enquanto tradutor visual.
Enxergar um evento não basta para o traduzir, descrever um evento, no sentido comum do verbo não significa áudio-descrever. Para que haja uma áudio-descrição, a descrição, enquanto tradução visual, precisa visar ao empoderamento da pessoa com deficiência, deve resguardar valores éticos como o de não à censura linguística ou imagética, de não à subestimação do cliente, e de não à apropriação deste, como uma mera fonte de renda, a quem se atrela ao serviço da áudio-descrição.
Em suma, se de um lado as diretrizes básicas do ato tradutório, aqui apresentadas, são aceitas pela maioria dos bons áudio-descritores e formadores em áudio-descrição, de outro estas diretrizes ainda continuam sendo desconhecidas/desrespeitadas nas áudio-descrições no Brasil.
Como ainda há um número muito inexpressivo de pessoas com deficiência que já experimentaram a áudio-descrição em nosso país, e como há um número ainda menor de obras áudio-descritas, como as pesquisas em áudio-descrição ainda se baseiam, em grande parte, em pesquisas de recepção, e como grande parte dos pesquisadores, formadores em áudio-descrição, e áudio-descritores não detêm conhecimento da literatura científica, a respeito dos processos adjacentes à aquisição e manejo de imagens e representações mentais pela pessoa com deficiência visual, é injustificada a produção de uma norma técnica sobre áudio-descrição, a qual não venha respeitar sequer os requisitos mínimos apresentados por Joe Clark, e que aqui discutimos.
Finalmente, é crucial que ampliemos a produção de áudio-descrição no país, a pesquisa científica nesta área, e a difusão dos direitos fundamentais da pessoa humana com deficiência, que sustentam a oferta da áudio-descrição, não só na cultura e no lazer, mas também na educação escolar, básica e universitária, assim como nos eventos científicos, conforme, afinal, prescreve o artigo 53 do Decreto Federal 5.296/04.
4- Referências Bibliográficas
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